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Praça Tahir, Cairo, dezembro de 2011 |
A pressão das classes dominantes estadunidense e norte-européias
sobre o mundo árabe-muçulmano vem aumentando na razão direta da profundidade do
atoleiro em que se debate o capital na era da finança globalizada.
Inquietos, os povos do mundo sentem crescer o ritmo da coreografia
macabra que os EUA, a Europa e Israel executam ao redor do regime dos aiatolás,
e se perguntam: no Afeganistão, teria sido por causa da destruição das torres
gêmeas de Nova York; no Iraque, das míticas armas de destruição em massa – e ambos
os países estão hoje em ruínas; no Irã, será por causa do programa nuclear – exclusividade na região, por "direito de império", dos generais paquistaneses e sionistas amigos do
“Ocidente”. Quando é que esse pesadelo vai acabar? Quando o petróleo secar?
A pressão se manifesta em todos os terrenos: militar, econômico,
diplomático, político e cultural. A
intervenção militar seletiva e oportunista dos Estados centrais e OTAN nas revoluções
democráticas em curso na região – cujo exemplo mais claro foi a Líbia, podendo
se repetir na Síria – é apenas um dos meios de que a finança global lança mão para se apossar, com um mínimo de
“custos de intermediação”, da totalidade das reservas de petróleo da região e
eliminar focos de resistência ao seu domínio sobre os recursos essenciais disponíveis
no mundo. Hoje é o petróleo; amanhã poderá ser... a água.
Para tapar o buraco legado pela explosão da bolha financeira
de 2008 e se recapitalizar sem levar à ruptura – o que é muito importante – o sempre
delicado equilíbrio social europeu, a finança globalizada, em sua desesperada
fuga para diante, parece procurar instintivamente a ampliação rápida e radical
de seu domínio sobre as fontes mundiais de petróleo.
Não lhes basta o petróleo que já têm sob controle: os países
centrais precisam desesperadamente de todo
o petróleo disponível nos depósitos do Norte da África e Oriente Médio, seja para
seguir movendo a custo relativamente baixo a sua decadente e insustentável indústria
automotiva – razão pela qual outra frente de guerra já está aberta, sobretudo
nos EUA, contra o ambientalismo em geral – seja para dar novo lastro à espiral
de valorização parasitária de seus capitais à base de securitização de contratos e especulação imobiliária, os verdadeiros motores dinâmicos da
economia de mercado contemporânea.
Para o capital globalizado, trata-se somente de sobreviver, não
importando que arraste consigo o planeta inteiro à ruína - econômica, política,
cultural e, finalmente, ambiental.
Como brinde pela conquista do acesso ilimitado ao petróleo,
as potências almejam também, é claro, incorporar ao mercado mundial por elas controlado
todos os fatores de produção (capitais, terra, mão de obra) e potenciais mercados
árabes consumidores de capitais e mercadorias, eventualmente bloqueados pela
vigência de instituições remanescentes dos movimentos de independência nacional
do segundo pós-guerra.
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Gamal Abdel Nasser |
Este parece ser o cerne do conflito entre a finança global gravemente ferida, mas longe de morta, e os califados nacional-burocráticos
resultantes da lenta, porém inexorável degeneração dos regimes herdeiros dos movimentos
nacionalistas árabes do terceiro quarto do século XX.
Foi no marco do movimento nacional-desenvolvimentista conhecido, de maneira só aparentemente contraditória como pan-arabismo, que se afirmaram a República Árabe do Egito, governada por Nasser –
que nacionalizou o Canal de Suez – a partir de 1953, a República Árabe da Síria
(unida ao Egito entre 1958 e 1961 como República Árabe Unida) e, finalmente, a
República da Líbia (unida ao Egito entre 1972 e 1979, como Confederação das
Repúblicas Árabes); rebatizada como república "Árabe, Popular e Socialista” a partir 1969-1970,
a Líbia de Kadafi nacionalizou bancos, empresas e os recursos petrolíferos do país.
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França, Inglaterra e Israel reagem militarmente
à nacionalização do Canal de Suez em 1953 |
A disputa, por parte da “comunidade internacional” (capital globalizado, Casa Branca, OTAN e grande imprensa), do significado da expressão
“primavera árabe”, tem um sentido claro: dar à revolução democrática pan-árabe –
que não aspira essencialmente senão a pão, terra, democracia e, como sempre,
independência nacional – o significado de uma continuidade, mais que um eco
tardio, da revolução democrática leste-européia que decretou o fim da
burocracia soviética e restabeleceu o “livre” mercado nos países onde o
essencial dele havia sido banido.
Trata-se, para esse simulacro de “comunidade
internacional”, de convencer os trabalhadores e camadas médias do mundo inteiro
de que o que querem a juventude, os trabalhadores e os pequenos proprietários árabes
é se livrar dos restos de limitações à propriedade herdados do panarabismo e se
ajoelhar de admiração ante os prodígios econômicos de Wall Street , da City e de
Frankfurt.
Comparando-se a atitude da grande imprensa da “comunidade
internacional” em face das revoltas democráticas na Tunísia, Egito, Bahrein,
Qatar, Iêmen, Líbia, Síria etc. pode-se concluir: todas são primaveras, mas algumas mais floridas do que outras – conforme a afiliação política e histórica
das respectivas famílias governantes.
No centro dessa encruzilhada está, porém, o Irã, um país muçulmano não árabe palco da mais tardia (1979),
violenta e, em certo sentido, intrigante das revoluções nacionais do Oriente Próximo, erguida sobre os escombros da tradição nacionalista laica
legada por Mossadegh (que nacionalizou o petróleo iraniano em 1952) mas também
por Nasser, Kadafi e até por Arafat.
Por ser, talvez, a mais tardia do mundo
muçulmano – sufocada durante quase 25 anos sob o tirânico reinado pró-EUA do xá
Reza Pahlevi –, a revolução iraniana de 1979 marcou, por outro lado, a derrocada
e submissão aparentemente definitivas do nacionalismo democrático laico e das pretensões pseudomarxistas
do outrora poderoso, mas já então decadente
Partido Comunista Iraniano (Tudeh). Com Khomeini, a revolução nacional e anti-imperialista
começa a se converter, em todo o Oriente Médio, Ásia Menor e até na Indonésia –
numa palavra, em todo o mundo muçulmano -, em “revolução muçulmana”, dando ao sentimento
anti-imperialista uma forte conotação de resistência civilizacional.
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O xá Rehza Pahlevi e a
imperatriz Farah Diba
em seu ambiente: a capa
da Paris Match |
Foi sustentando Reza Pahlevi até o limite do absurdo que os EUA
e a Grã-Bretanha conseguiram a proeza de dar justificativa histórica, em fins
do século XX, ao renascimento, no Irã, do Estado teocrático muçulmano, que emergiu como uma
forma “ultra-sui-generis” de regime bonapartista apoiado sobre uma juventude
intensamente radicalizada e uma milícia de extração popular cujas oscilações à
esquerda lhe dão uma aparência nacionalista revolucionária e, à direita, claramente fascista.
Foi assim, creio, meio empurrado pelas circunstâncias meio
por vontade própria de sua juventude revolucionária islâmica, que o Irã dos aiatolás se
converteu em referência inevitável para toda revolução democrática árabe que
não tenha uma liderança laica à altura das tarefas históricas a cumprir.
A teocracia
iraniana é, para a dita "comunidade internacional", o inimigo a ser destruído. Não por ser teocracia, muito menos
por seu caráter inerentemente conservador e antidemocrático – que a plutocracia
estadunidense e os nobres financistas britânicos não estão nem aí para essas futilidades – mas por ser, em alguma
medida, nacional e anti-imperialista e, até por questão de sobrevivência, mais
que tudo anti-EUA.
Sabe Alá aonde tudo isso vai dar!
2012-01-05