quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Todas são primaveras, umas mais floridas do que outras

Praça Tahir, Cairo, dezembro de 2011
A pressão das classes dominantes estadunidense e norte-européias sobre o mundo árabe-muçulmano vem aumentando na razão direta da profundidade do atoleiro em que se debate o capital na era da finança globalizada.

Inquietos, os povos do mundo sentem crescer o ritmo da coreografia macabra que os EUA, a Europa e Israel executam ao redor do regime dos aiatolás, e se perguntam: no Afeganistão, teria sido por causa da destruição das torres gêmeas de Nova York; no Iraque, das míticas armas de destruição em massa – e ambos os países estão hoje em ruínas; no Irã, será por causa do programa nuclear – exclusividade na região, por "direito de império", dos generais paquistaneses e sionistas amigos do “Ocidente”. Quando é que esse pesadelo vai acabar? Quando o petróleo secar?

A pressão se manifesta em todos os terrenos: militar, econômico, diplomático, político e cultural.  A intervenção militar seletiva e oportunista dos Estados centrais e OTAN nas revoluções democráticas em curso na região – cujo exemplo mais claro foi a Líbia, podendo se repetir na Síria – é apenas um dos meios de que a finança global lança mão para se apossar, com um mínimo de “custos de intermediação”, da totalidade das reservas de petróleo da região e eliminar focos de resistência ao seu domínio sobre os recursos essenciais disponíveis no mundo. Hoje é o petróleo; amanhã poderá ser... a água.

Para tapar o buraco legado pela explosão da bolha financeira de 2008 e se recapitalizar sem levar à ruptura – o que é muito importante – o sempre delicado equilíbrio social europeu, a finança globalizada, em sua desesperada fuga para diante, parece procurar instintivamente a ampliação rápida e radical de seu domínio sobre as fontes mundiais de petróleo. 

Não lhes basta o petróleo que já têm sob controle: os países centrais precisam desesperadamente de todo o petróleo disponível nos depósitos do Norte da África e Oriente Médio, seja para seguir movendo a custo relativamente baixo a sua decadente e insustentável indústria automotiva – razão pela qual outra frente de guerra já está aberta, sobretudo nos EUA, contra o ambientalismo em geral – seja para dar novo lastro à espiral de valorização parasitária de seus capitais à base de securitização de contratos e especulação imobiliária, os verdadeiros motores dinâmicos da economia de mercado contemporânea.

Para o capital globalizado, trata-se somente de sobreviver, não importando que arraste consigo o planeta inteiro à ruína - econômica, política, cultural e, finalmente, ambiental.  

Como brinde pela conquista do acesso ilimitado ao petróleo, as potências almejam também, é claro, incorporar ao mercado mundial por elas controlado todos os fatores de produção (capitais, terra, mão de obra) e potenciais mercados árabes consumidores de capitais e mercadorias, eventualmente bloqueados pela vigência de instituições remanescentes dos movimentos de independência nacional do segundo pós-guerra.

Gamal Abdel Nasser 
Este parece ser o cerne do conflito entre a finança global gravemente ferida, mas longe de morta, e os califados nacional-burocráticos resultantes da lenta, porém inexorável degeneração dos regimes herdeiros dos movimentos nacionalistas árabes do terceiro quarto do século XX. 

Foi no marco do movimento nacional-desenvolvimentista conhecido, de maneira só aparentemente contraditória como pan-arabismo, que se afirmaram a República Árabe do Egito, governada por Nasser – que nacionalizou o Canal de Suez – a partir de 1953, a República Árabe da Síria (unida ao Egito entre 1958 e 1961 como República Árabe Unida) e, finalmente, a República da Líbia (unida ao Egito entre 1972 e 1979, como Confederação das Repúblicas Árabes); rebatizada como república "Árabe, Popular e Socialista” a partir 1969-1970, a Líbia de Kadafi nacionalizou bancos, empresas e os recursos petrolíferos do país.
França, Inglaterra e Israel reagem militarmente
à nacionalização do Canal de Suez em 1953 

A disputa, por parte da “comunidade internacional” (capital globalizado, Casa Branca, OTAN e grande imprensa), do significado da expressão “primavera árabe”, tem um sentido claro: dar à revolução democrática pan-árabe – que não aspira essencialmente senão a pão, terra, democracia e, como sempre, independência nacional – o significado de uma continuidade, mais que um eco tardio, da revolução democrática leste-européia que decretou o fim da burocracia soviética e restabeleceu o “livre” mercado nos países onde o essencial dele havia sido banido.

Trata-se, para esse simulacro de “comunidade internacional”, de convencer os trabalhadores e camadas médias do mundo inteiro de que o que querem a juventude, os trabalhadores e os pequenos proprietários árabes é se livrar dos restos de limitações à propriedade herdados do panarabismo e se ajoelhar de admiração ante os prodígios econômicos de Wall Street , da City e de Frankfurt.

Comparando-se a atitude da grande imprensa da “comunidade internacional” em face das revoltas democráticas na Tunísia, Egito, Bahrein, Qatar, Iêmen, Líbia, Síria etc. pode-se concluir: todas são primaveras, mas  algumas mais floridas do que outras – conforme a afiliação política e histórica das respectivas famílias governantes. 

No centro dessa encruzilhada está, porém, o Irã, um país muçulmano não árabe palco da mais tardia (1979), violenta e, em certo sentido, intrigante das revoluções nacionais do Oriente Próximo, erguida sobre os escombros da tradição nacionalista laica legada por Mossadegh (que nacionalizou o petróleo iraniano em 1952) mas também por Nasser, Kadafi e até por Arafat. 

Por ser, talvez, a mais tardia do mundo muçulmano – sufocada durante quase 25 anos sob o tirânico reinado pró-EUA do xá Reza Pahlevi –, a revolução iraniana de 1979 marcou, por outro lado, a derrocada e submissão aparentemente definitivas do nacionalismo democrático laico e das pretensões pseudomarxistas do outrora poderoso, mas  já então decadente Partido Comunista Iraniano (Tudeh). Com Khomeini, a revolução nacional e anti-imperialista começa a se converter, em todo o Oriente Médio, Ásia Menor e até na Indonésia – numa palavra, em todo o mundo muçulmano -, em “revolução muçulmana”, dando ao sentimento anti-imperialista uma forte conotação de resistência civilizacional.

O xá Rehza Pahlevi e a
imperatriz Farah Diba
em seu ambiente: a capa
da Paris Match 
Foi sustentando Reza Pahlevi até o limite do absurdo que os EUA e a Grã-Bretanha conseguiram a proeza de dar justificativa histórica, em fins do século XX, ao renascimento, no Irã, do Estado teocrático muçulmano, que emergiu como uma forma “ultra-sui-generis” de regime bonapartista apoiado sobre uma juventude intensamente radicalizada e uma milícia de extração popular cujas oscilações à esquerda lhe dão uma aparência nacionalista revolucionária e, à direita, claramente fascista.

Foi assim, creio, meio empurrado pelas circunstâncias meio por vontade própria de sua juventude revolucionária islâmica, que o Irã dos aiatolás se converteu em referência inevitável para toda revolução democrática árabe que não tenha uma liderança laica à altura das tarefas históricas a cumprir.

A teocracia iraniana é, para a dita "comunidade internacional", o inimigo a ser destruído. Não por ser teocracia, muito menos por seu caráter inerentemente conservador e antidemocrático – que a plutocracia estadunidense e os nobres financistas britânicos não estão nem aí para essas futilidades – mas por ser, em alguma medida, nacional e anti-imperialista e, até por questão de sobrevivência, mais que tudo anti-EUA.

Sabe Alá aonde tudo isso vai dar!



2012-01-05