quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Ler ou não ler Fukuyama chega a ser uma questão?

Decidido a colocar um pouco de método em minhas leituras para tentar enxergar algum rastro da estranha e gigantesca ave que avultou, a certa altura, no céu de Barcelona, começo a encarar The End of History and the Last Man, de Francis Fukuyama.

Afinal, trata-se do livro que marcou, ainda em 1992, a primeira e até hoje mais conhecida tomada de posição teórica do liberalismo em face do desmoronamento da União Soviética. A edição 2006 da Free Press – um nome muito a propósito – é uma brochura de 400 páginas em letra miúda. Respiro fundo e começo. 

Eis que, ainda no prefácio, depois de definir o “desejo de reconhecimento como motor da história” – proposição que me deixou ao mesmo tempo espantado e curioso – Fukuyama nos apresenta a seguinte construção: 
“A luta pelo reconhecimento nos dá uma idéia da natureza da política internacional. O mesmo desejo de reconhecimento que originalmente levou dois indivíduos beligerantes a uma sangrenta batalha de prestígio conduz logicamente ao imperialismo e ao império mundial. A relação senhor-vassalo a nível doméstico é naturalmente reproduzida a nível dos Estados, onde países em busca de reconhecimento se engajam em sangrentas batalhas pela supremacia.” 

Esta passagem me trouxe imediatamente à lembrança certa crítica que havia lido em tempos (muito) passados. Na primeira oportunidade fui à prateleira dos quase esquecidos, peguei o livro e, depois de alguma pesquisa, achei o que procurava. Estava lá, tão rigorosamente aplicável quanto eu havia imaginado. Ao leitor ludicamente motivado deixo a missão de descobrir o autor dessas linhas e o alvo da sua diatribe. Foi escrito em 1878 – mas poderia ter sido em 1992.

“O sr. [X] analisa a sociedade em seus elementos mais simples e descobre que a mesma, reduzida em sua expressão mais simples, é formada por dois homens. (...) Existe algum problema de economia, política, etc. para resolver? Pois imediatamente se põem em campo os nossos dois homens e resolvem a coisa “axiomaticamente”, de um só golpe. (...) É pena que o respeito à verdade nos obrigue a dizer que a descoberta não é precisamente sua! Esses dois homens de encomenda são patrimônio de todos o século XVIII. Já os conhecemos em 1754 no “Discurso sobre as desigualdades dos homens de J. J. Rousseau (...). Tornamos a nos encontrar com eles, desempenhando um papel de relevo, na economia política desde Adam Smith até Ricardo (...). Mas o século XVIII se utiliza, de um modo quase exclusivo, desses personagens, a título de ilustração e exemplo; a originalidade do sr. [X] consiste em tomar este método puramente ilustrativo como método fundamental aplicável a toda a ciência da sociedade e como critério para o estudo de todas as manifestações históricas.” 

Até aqui, diria o nosso rigoroso crítico, trata-se de má filosofia. Mais adiante, porém, no mesmo prefácio, Fukuyama nos apresenta a sua visão de ciência empírica aplicada ao fenômeno da guerra imperialista:

"Um mundo constituído de democracias liberais deveria, pois, ter muito menos incentivo para a guerra dado que todos os países se reconheceriam como reciprocamente legítimos. De fato, substanciais evidências empíricas [itálico meu] dos últimos dois séculos mostram que as democracias liberais não se comportam de maneira imperialista umas em relação às outras, ainda que sejam perfeitamente capazes de ir à guerra contra Estados que não são democracias e não compartem seus valores fundamentais."

Esta maravilha da razão dedutiva, que para o autor é, provavelmente, puro produto da indução   ("substanciais evidências empíricas mostram que") pode ser expressa por meio do seguinte silogismo:

1 Países imperialistas fazem guerra contra outros países
2 As democracias liberais não se guerrearam nos últimos dois séculos
3 Logo, as democracias liberais não são imperialistas umas em relação às outras.

A restrição assinalada em itálico dá conta do que se me afigura um canhestro álibi com que o autor tenta não dar margem a que o acusem de afirmar que democracias liberais não são, por definição, imperialistas. 

Fukuyama diz que os países liberais não são imperialistas “entre si” para preparar o leitor para a sua originalíssima tese de que eles são, porém, "perfeitamente capazes de ir à guerra contra Estados que não são democracias e não compartem seus valores fundamentais." Pode-se inferir, pois, que, para Fukuyama, a ação das democracias liberais na África, Ásia, Oriente Médio e América do Sul é, de fato, “comportamento imperialista”, mas... não conta como tal. Por quê? 

Porque as nações subjugadas não eram democracias liberais. 

Qualquer semelhança com a ideia da justeza intrínseca de sua "missão civilizacional" com que os britânicos sempre justificaram a barbárie colonialista da velha Albion na Ásia e África não é mera coincidência. É imperialismo requentado. 

Além disso, nos sugere o professor, as guerras mundiais do século XX não tiveram nada a ver com “comportamento imperialista” porque não opuseram umas contra as outras as [nações mais tarde identificadas como] democracias liberais. (Cabe lembrar aqui que a Alemanha foi, de fato, uma democracia liberal entre a derrota do levante operário que forçou o fim da I Guerra Mundial e a ascensão de Hitler – pelos caminhos da democracia liberal, aliás, o que talvez se explique pelo fato de os alemães não serem, afinal, tão fanáticos pelo liberalismo quanto deveriam). 

Para Fukuyama parece inteiramente irrelevante que, nessas guerras, de um lado estivessem as democracias liberais - a começar da campeã do pacifismo internacional, a Grã-Bretanha - detentoras do controle absoluto de quase todas as economias periféricas do planeta, na época chamadas de “colônias” e, do outro, as potências capitalistas retardatárias, convertidas em repúblicas fascistas sequiosas por obter a sua parte no butim africano e asiático, principalmente. A posição das democracias liberais seria intrinsecamente justa porque as economias dominadas não eram democracias liberais, mas reinos ou repúblicas despóticas, e a das potências fascistas intrinsecamente injusta por estarem situadas no mesmo plano moral – não liberal-democrático – das tiranias periféricas. 

E assim vamos, andando sempre em círculos. 

Com a circunspecção acadêmica de quem acredita estar apenas repisando noções há muito assentadas – a que não falta a inestimável legitimação antecipada da própria ciência comunista oficial – este paladino do liberalismo assim introduz, sem nem precisar mencioná-la, a confortante versão de que a carnificina imperialista mundial de 1939-45 foi uma guerra das democracias liberais contra o fascismo. “Disgusting!”, digo eu, à maneira do nosso Francis. 

Ao terminar o prefácio, já arrastando os tamancos, eu me perguntei: com o devido respeito ao autor e à minha disciplina de leituras, vale a pena perder meu precioso tempo com 400 páginas deste provável pântano de pura ideologia "liberal"? 

O livro está lá, na fila de espera. Ainda pretendo lê-lo, página a página, estoicamente. Mas não antes de me entender com essa entidade verdadeiramente orwelliana que assola os nossos meios de comunicação e agride a nossa inteligência – a “comunidade internacional”. O fim da história fica para depois.

2011-10-26